ABRIL VERDE: Segunda cidade gaúcha com mais acidentes e doenças do trabalho ganhou unidade judiciária especializada na matéria
A cidade de Caxias do Sul, na serra gaúcha, é a segunda localidade em que mais ocorrem acidentes e doenças do trabalho no Estado. Entre 2012 e 2017, foram notificados 22.042 casos no município. A capital Porto Alegre, líder do fatídico ranking, registrou 55.778 ocorrências no mesmo período. Os dados são do Observatório Digital de Segurança e Saúde no Trabalho. Conforme o estudo, no mesmo período foram expedidos 8.635 auxílios-doença por acidente ou doença laboral na cidade serrana. O impacto previdenciário desses afastamentos foi de R$ 69,6 milhões, com a perda de 1,2 milhão de dias de trabalho.
A alta acidentabilidade em Caxias do Sul é explicada, em parte, pela intensa atividade industrial na região. Só o setor metalúrgico reúne mais de 1,8 mil empresas na cidade e seus arredores. Há, também, significativa presença de fabricantes dos ramos de plásticos e da alimentação.
Todo esse contexto levou à criação, em 2012, de uma unidade judiciária especializada no julgamento de casos envolvendo acidentes e doenças laborais: a 6ª Vara do Trabalho (VT) de Caxias do Sul. Desde sua instalação, em setembro daquele ano, a unidade tem na titularidade o juiz do Trabalho Marcelo Silva Porto. O magistrado afirma que a situação de Caxias é muito mais grave do que apontam as estatísticas oficiais: segundo ele, só são registrados aproximadamente 20% dos acidentes e doenças que acontecem na região.
Em 2017, a 6ª VT de Caxias do Sul recebeu 1.381 novos processos. Conforme Marcelo, em média, 60% das ações que chegam à unidade tratam de lesões por esforços repetitivos (LER) e distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Os outros 40% referem-se a acidentes típicos. Entre as principais doenças ocupacionais que acometem os trabalhadores, aponta o magistrado, estão bursite, síndrome do túnel do carpo e tenossinovite – inflamações em membros superiores causadas por esforços repetitivos –, além de problemas na coluna cervical e na lombar, devido a má postura corporal durante a jornada. “Em muitas pessoas essas doenças são degenerativas e não têm origem só no trabalho, mas a atividade profissional acaba contribuindo para o agravamento do quadro. É o que chamamos de concausa”, explica o juiz. Já os acidentes típicos mais comuns ocorrem durante a operação de prensas, guilhotinas e moinhos, muitas vezes resultando em amputação de dedos e de partes da mão do empregado. “Tanto homens quanto mulheres são vítimas de doenças e acidentes laborais”, informa o titular da 6ª VT. O magistrado também manifesta preocupação com outro aspecto: muitos imigrantes estão sofrendo acidente de trabalho na região de Caxias. “Eles são colocados em atividades ligadas à metalurgia e lhes falta preparação técnica. Não recebem o treinamento necessário para se precaver dos riscos das atividades”, comenta.
Causas
Mas por que ocorrem tantos acidentes e doenças do trabalho na região de Caxias do Sul? Analisando milhares de processos sobre o tema e laudos de peritos técnicos que avaliam as condições de trabalho nas empresas, o juiz Marcelo Porto acredita que ainda falta maior conscientização sobre prevenção. “É comum o maquinário não estar adequado para proteger o trabalhador. Também falta treinamento para os riscos da operação serem compreendidos. Além disso, há diversas situações de uso não adequado de EPIs: empregado que não se preocupa com isso, e empregador que não orienta e nem fiscaliza a correta utilização dos equipamentos”, afirma o magistrado. “Mas isso não acontece em todas as empresas, não podemos generalizar”, complementa. O titular da 6ª VT caxiense alerta que muitos acidentes ocorrem no final da jornada, quando o trabalhador já está cansado ou cumprindo horas extras, e em situações nas quais um empregado cobre o turno de um outro colega, executando atividade para a qual não foi devidamente treinado. Em relação às LER/DORTS, o juiz entende que a principal causa é a falta de preocupação com a ergonomia dos postos de trabalho. Reflexo disso é a não observância, por muitas empresas, da NR 17 – Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho sobre ergonomia. “Nos casos que analisamos aqui, raramente a vítima teve culpa total ou parcial pelo acidente ou desenvolvimento de doença”, sublinha o magistrado.
Segundo Marcelo Porto, as sentenças da 6ª Vara do Trabalho de Caxias do Sul também enfatizam o aspecto pedagógico, chamando a atenção das rés sobre a importância de investir e se preocupar com a prevenção. No entendimento do magistrado, a especialização da unidade judiciária traz muitos ganhos à prestação jurisdicional nesta matéria. “O juiz acaba ficando especializado naquilo que julga”, observa. A 6ª VT de Caxias do Sul também montou uma equipe multidisciplinar de especialistas, que conta com médicos de diferentes áreas, engenheiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, entre outros. Os profissionais são requisitados pelo juízo nos processos e seus laudos e pareceres técnicos auxiliam os magistrados a tomarem as decisões. “Em reclamatórias que envolvem acidente com morte, por exemplo, o assistente social visita viúva e filhos para avaliar o impacto da fatalidade no núcleo familiar. Um psiquiatra, por sua vez, nos ajuda a saber se a depressão que o trabalhador alega ter ligação com o trabalho também tem origem em questões pessoais”, cita Marcelo. Médicos, fisioterapeutas e engenheiros auxiliam o juízo na investigação das causas dos acidentes e doenças, e na avaliação da extensão dos danos. “No caso de um trabalhador que desenvolveu uma hérnia inguinal, uma junta de três peritos atuou no processo”, recorda o magistrado.
Valendo-se do conhecimento adquirido na atividade jurisdicional e no estudo do tema, os juízes da 6ª VT, acompanhados do diretor de secretaria Paulo Roberto Cardoso de Siqueira, também realizam inspeções judiciais in loco nas empresas, quando surge alguma dúvida sobre a situação fática ou se constata necessidade de outras informações além das apresentadas nos laudos técnicos. Juntamente com o titular Marcelo, atua na unidade judiciária a juíza do Trabalho substituta Fernanda Probst Marca.
Exemplos
Em processo ajuizado na 6ª VT de Caxias do Sul, um ex-empregado de uma indústria de implementos rodoviários alegou ter sofrido lesões no punho e no cotovelo esquerdos, e nos olhos, devido ao trabalho. O juiz Marcelo Porto designou perícias ortopédica, oftalmológica e de análise das condições ergonômicas. Os laudos constataram concausa da atividade laboral para a enfermidade no cotovelo, descartando qualquer dano no punho. A perícia oftalmológica concluiu que o autor teve “lesões cicatriciais não incapacitantes e não visíveis, a olho nu, em olhos, havendo nexo causal com a execução de suas atividades laborais, mormente e em virtude da utilização de jato de granalha”. Entretanto, nenhuma dessas lesões causou limitação, restrição ou prejuízo funcional ao reclamante, nem o incapacitou para o trabalho. Assim, o magistrado rejeitou os pedidos de indenizações por danos materiais e morais.
Em outro processo ajuizado na mesma unidade, o resultado foi diferente. Uma ex-empregada de uma metalúrgica foi diagnosticada com “síndrome do impacto com bursite em ombro direito”. A perícia constatou concausalidade com as atividades realizadas por ela na empresa, tendo em vista a verificação de condições inadequadas de ergonomia em seu posto de trabalho. Devido à lesão e à constatação de incapacidade total para o trabalho por dois meses, ela recebeu auxílio-doença durante esse período, iniciando o gozo do benefício cerca de 15 dias após ter sido despedida pela empresa. No processo, o juiz Marcelo Porto acolheu o pedido de indenização da garantia de emprego – pela lei, essa garantia é de um ano após a cessassão do benefício previdenciário. Como esse período de um ano de garantia já havia transcorrido, ela ganhou o direito de receber indenização substitutiva. O juiz também deferiu a ela uma pensão referente aos dois meses de incapacidade, por danos materiais. E para reparação de danos morais, o magistrado fixou indenização de R$ 2.000,00.
Ambos os processos citados estão em fase de recurso ordinário no TRT-RS.
Agilidade processual
Todas essas particularidades da unidade judiciária especializada acaba trazendo ganhos na tramitação dos processos, aponta Marcelo Porto. Em média, a 6ª VT de Caxias do Sul julga uma ação trabalhista em 9 meses. As perícias são realizadas em prazos de 30 a 40 dias. A Vara também consegue firmar muitos acordos em processos em fase de liquidação ou execução. “Quando já temos o trânsito em julgado no mérito, fica mais fácil. A gente já sabe o que é devido no processo: lucros cessantes, danos emergentes, dano moral, etc. Assim, as chances de conciliação aumentam muito”, explica o juiz.